7.4.10

desassossego

que há (de alguém) confessar que valha ou que sirva? o que nos sucedeu, ou sucedeu a toda a gente ou só a nós; num caso não é novidade, e no outro não é de compreender. se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. o que confesso não tem importância, pois nada tem importância. faço paisagens com o que sinto. faço férias das sensações. compreendo bem as bordadoras por mágoa e as que fazem meia porque há vida. minha tia velha fazia paciências durante o infinito do serão. estas confissões de sentir são paciências minhas. não as interpreto, como quem usasse cartas para saber o destino. não as ausculto, porque nas paciências as cartas não têm propriamente valia. desenrolo-me como uma meada multicolor, ou faço comigo figuras de cordel, como as que se tecem nas mãos espetadas e se passam de umas crianças para as outras. cuido só de que o polegar não falhe o laço que lhe compete. depois viro a mão e a imagem fica diferente. e recomeço.
[…]
um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e quando o compreendam, hão de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. e o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.
[livro do desassossego - fernando pessoa]

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